sábado, 21 de dezembro de 2013

Conto de Natal (parte II)

Antero recebia todos os anos, pelo Natal, 100$00 do seu pai. Dava para uma gracinha, todos os anos, desde o seu tempo de meninice. O gesto do seu pai ainda se mantinha, mesmo na idade supostamente adulta, recebendo uma quantia pela altura, agora de €0,50 - mantinha-se basicamente o mesmo, para o Sachola não ficar triste com algum dinheiro a menos, no fundo, um gesto generoso do seu progenitor. Mas 2013 trouxe bónus. O vitelo que Antero criara nos últimos 7 meses já era um grande boi (não é um insulto), pronto para vender para a matança e dar carne. Com a receita de tal venda, o Sachola tirou €100 para realizar um sonho de criança: visitar a cidade.
Assim foi, munido de €100,50, Antero apanhou boleia com o Miquelino da Buraca, na sua Casal de 2, até ao apeadeiro do autocarro. Finalmente, após 2 horas e meia de espera, a carreira das aldeias iniciou a sua viagem de 3 horas pelas estradas mal alcatroadas da província, chegando finalmente à urbe imensa que abraçou o Antero numa realidade completamente estranha para o rapaz. Luzes, multidões e carros barulhentos com modelos que Antero nunca vira antes. Nem um barulhinho de motorizada de 50cc era perceptível para o apurado ouvido do Sachola, apenas brutos motões... Em algumas bermas e passeios estavam pessoas sentadas, muito magras e sujas. Para Antero, eram lavradores acabados de vir de uma lavoura a descansar antes de tomarem um banho... Mas, pensava Antero, "não estamos na altura das lavouras... E porque há pessoas a atirarem-lhes moedas? E onde estão os campos para lavrar aqui na cidade? Não vi nenhum...".
À saída do autocarro, Antero é surpreendido por um carro que assusta "meio mundo" ao passar em velocidade exagerada numa passadeira para aproveitar um amarelo do semáforo. Ao lado de Antero, um homem de boina, sexagenário, interpela o Sachola:
- Já viu menino? Esta gente hoje em dia não tem respeito...
- Realmente, senhor. Devia estar com pressa aquela pessoa!
O homem prosseguiu:
- É este país, esta maldita terra, governada pelos gatunos que estão na capital. Aquele maldito partido, o PFT, comandita de gatunos. Eles é que nos encaminharam para esta situação...
- Como assim? - perguntou, curioso, o Sachola.
- Quando era o PBA a governar, o país ainda tinha esperança, o grande primeiro-ministro João Platão, falava tão bem o homem... Lá fez o esforço.
- Há quanto tempo foi mudado o governo? - continuou Sachola.
- Há um ano... - respondeu o homem.
- E, num ano, o partido seguinte é que deu cabo de tudo?...
Interrompendo, algo nervoso, o homem respondeu:
- Ó menino, deixe-se de ilusões. Este país sempre foi pobre. o PBA sempre deu tudo ao povo, autoestradas, pontes, campeonatos de futebol, etc., etc....
- Ah, sim? Óptimo, porreiro. Sabe, eu nunca vi isso. - continuou Sachola, na sua ingenuidade algo rural - Quanto tempo esteve o PBA à frente antes do PFT?
- 15 anos. - respondeu prontamente o homem.
- E o que tem o PBA para o país? - continuou Antero a inquirir.
- Políticas do lado de lá! Isso sim, é que é bom para todos, para os ricos deixarem de roubar dinheiro aos pobres... Para as próximas eleições, lá vou eu votar no PBA outra vez... Ah, as saudades do Eng. Platão, a flor de espinhos vai voltar a florir com o país.
Na cabeça de Sachola tudo era confuso... Então, o partido que esteve mais tempo é inocente e o partido que está há pouco tempo é que é inteiramente culpado?

Mais à frente, Sachola entrou num café para tomar uma chávena. Pagou €2,00, e nem "tussiu". Pensava para si mesmo, "só por isto parecer um palácio pago quatro vezes mais que o café tão bom da terra"... "E sabe a mixórdia", concluiu após um golo.
Ao seu lado, um jovem nos seus vinte e tais, de gravata e fato e uma malinha, tomava da tal mesma mixórdia. Olhando para ele, Sachola pensava que o rapaz tinha bom corpo para trabalhar, pensado porque raio já estava ali a tomar café de fatinho, a horas normais de trabalho. Apercebendo-se da admiração e observação do Antero, o rapaz interpelou-o:
- Ora viva, caro amigo! Está bom o cafézinho?
- Nada mau, nada mau! - respondeu Sachola, para não parecer mal, enquanto ficava pasmado com o vocabulário do personagem - Se me permite, o senhor assim tão bem vestido, deve já ser um capataz numa firma, não?
Rindo-se amigavelmente, respondeu:
- Não, meu caro. Sou gestor e assessor numa empresa de topo.
- Ah... Bem, o que... O que é isso? - gaguejou Antero.
- Ah, bem, sabe como é... Tenho que ir para o escritório, a reuniões, fazer pareceres e aconselhar os chefes, assinar papéis, etc... - retorquiu o gestor/assessor.
Antero ficou curioso com tal profissão fora do (seu) normal. Prosseguiu:
- E que é preciso para se fazer disso vida?
- Bem, é assim: estudei na Universidade Lusófila Livre, tirei a licenciatura em ciências políticas e ingressei na empresa do meu pai. Conhece, o Fernando Ullrianov? - explicou o jovem.
- Não, não conheço... Se me permite, quanto ganha ao mês? - continuou o ingénuo Sachola.
- O meu pai é um militante de longa data do PFT, com anos de experiência nos bancos. Admira-me que não conheça... Bem, ganho €3000 ao mês, fora comissões. Nada mau, para primeiro emprego! - concluiu o jovem - Bem, tenho que ir fazer alguma coisa, hoje tenhos 2 holdings, 3 swaps e uma meeting. Tenho que fazer alguma coisa, não é?
Sachola nem respondeu, tal o número de "inglesices" com que se deparou...

Prosseguiu o seu passeio. Foi para a fila de um estabelecimento que vendia sandes de carne picada. à sua frente, um personagem de roupa larga, calças pelo joelho, cabelo grande ajeitado para um dos lados - talvez pelo vento - e brinco na orelha destapada. Curioso sobre as tais sandes, Sachola pediu informações ao miúdo:
- Desculpe jovem, o que se vende aqui?
- Yah, bute lá um beca mano... - respondeu o rapaz, com sorriso trocista, prosseguindo - Este é o McDonald's, vendem-se hamburgueres, sócio. Carne picada, alface e outras cenas, percebes?
- Ah, muito obrigado. O jovem anda na escola, está de férias? - Sachola andava desprendido na curiosidade.
- Eish, mano! Tu não me fales da escola! Pash! Estou farto daquela treta, percebes? Finalmente, pash! - respondeu o rapaz. Os professores são bué chatos. Um mano vai para lá para curtir uma beca e lá vêm eles moer a cabeça, "estuda", "faz os exercícios", "não balances a cadeira"...
Antero prosseguiu:
- Está a estudar para aprender o quê?
- Estudar é para burros. Pash! Eu ensino, não aprendo. A escola é para ir ver as babes, mano. Quero lá saber dos livros. Eu quero é ser DJ, sabes? Fazer umas misturas, meter uns vibes, curtir com umas babes. Tudo isso mano, festas porreiras, estilo swag, isso é que é vida!...
- E vais estudar para isso? - continou Sachola.
- Já te disse, mano, estudar não... Não é preciso.

Sachola deglutiu rapidamente a dita sandes, o hambúrguer. A carne parecia marshmallow, quando comparada com a boa carne que se criava na quinta de seu pai, exigindo mastigar por 20 vezes antes de deglutir. Caía a noite mais densa, com menos carros, e apenas as luzes de Natal. Era aquilo que Sachola queria ver, as ditas luzes... No entanto, após aquelas esquisitas experiências, Antero não se sentia seguro... Bom bom, era estar em casa. Sabia-lhe bem trabalhar e divertir-se num mundo sem PBA, PFT, políticas de lado-de-lá e lado-de-cá, trabalhos sentados a fazer "inglesices", calças pelos joelhos e dj's, vibes e afins...